“(…)Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.”-Soneto de Fidelidade, Vicicius de Moraes, 1939.
I
Porque eu quero estar presente
Só por isso
Quero poder mergulhar nas profundezas da sua fala prolixa
E rapidamente voltar a realidade
Naturalmente,
Me afogo entre as suas linhas escuras
E caminho entre vales de ócio
Pós suspiro
Após a risada
Me ponho novamente no jogo
Confiante que desta vez não me enlaço
Na sua lábia
II
Queria que a porosidade
Dos nossos encontros
Transbordassem
Toda a água e fogo
Que minha alma chama
Na cama, no chão, no mato
Me mata e me morde
Me arranca um pedaço
Chora e me clama
Me toca nos olhos
Faz de meias palavras
Mormaço
E em segredo,
Em privado
Faço do seu quarto um antro
Entro em todo cômodo
Na lama, no vento, deitada
Me ama, me cega
Me ensina braille
Me acomoda no seu tempo
Rápido, ofegante
Até que só fique o som
Abafado
No pé do seu ouvido
III
Pot-pourri
Me desculpa.
Eu queria ser esses poetas
Que escrevem sem sentir
Quem consegue inventar motivos
Fingir que ama
Eu sei que amo
Até demais
Não importa a distância
Ou a vontade de sossego
Eu sei que vou te amar
Eu fui regada pelos clichês
Criada pelas bossas
E se eu disser que te amo
Não acredite
Eu sou exagerado.
Por mais que eu finja,
O que me corta o peito
Sangra
O que me faz sentido
Transborda
E por mais que eu diga
Que não gosto do seu jeito
Do seu fogo
Que me faz rosar as bochechas
Eu não posso fingir
Que não sinto falta do calor
Eu posso dizer aos tantos
Que não te quero
E não quero que o que eu sinto
Mas sei que no fundo estou fingindo
Você é a Natureza
E eu sou o Poeta
Não queria ter uma musa
Mas aqui você está
Me fazendo rodear seus planos
Salivar seus ângulos
Tatear seu fundo
Eu queria poder dizer
que não te quero
Eu queria poder saber
Que não vou te abrir meu mistério
Eu queria saber muito
E saber que te ter
É ter problemas
Eu sei que sou desafinado
Mas que você gosta do meu ritmo
Queria não sentir saudade do carnaval
Queria que você não me lembrasse dele
Queria que quarta feira não viesse
E que quarta feira não existisse
Mas aqui estamos
Chove lá fora
E nem é março.
IV
Canibalizando
Quero me enrolar no seu pescoço
Até você não poder mais dizer
Que eu não faço parte de ti
Quero poder me arrancar um pedaço bom
Pra que não haja motivo
Pra você se afastar de mim
Não me importa o conforto
Não me importa o que eu quero
Contanto que seja o mesmo que o teu
Azeite, cominho e seus dedos
Depois que provei do seu gosto
Posso morrer feliz
Cozinhando
Quatro paredes não fazem casa
Mas em você sim
Vontade e apetite
Me desmanchando inteira
Para o seu paladar.
V
Eu não quero amar você
Quero tomar um bom banho
E arrancar seu gosto de mim
Não quero perder meu tempo
Meus sorrisos bobos
Minhas histórias
Pra criar
O que ainda está pra acontecer
Não quero que meus dias
Dêem voltas na sua agenda
Não quero que minhas músicas
Meus filmes
Só contem histórias de nós
Quero que o “nós” não exista
Porque eu sinto
Eu sei
Que se você virar a esquina
Eu deixo de existir
Sem seu toque
Sem seu cheiro
Até as manhãs mais vibrantes
Viram filme noir
Eu não sou detetive
Mas você é Femme Fatal
E não posso desvendar
Os mistérios que passam
Por detrás dos seus olhos
Profundos
Não quero que cada verso meu
Vire um clichê
Ou quadrinha
De paixão
Não posso negar
Que quando não te encontro
Fico sem chão
Viro órfão
Com sua ausência
Perco sentido
E com você eu perco a razão
Se seus dedos
Não me roubassem
O ar
Se seus dentes
Não arrancassem
Os meus
Meus dias seriam
Significativamente
Mais sóbrios
Eu sei que não posso
Recair à embriaguez
Porque seu cheiro
É alcoólico
E eu sou um alcoólatra
Em recuperação